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Elas cuidam do Brasil

Histórias de mulheres que se desdobram entre o cuidado com os filhos e o trabalho na saúde

Por Danielle SanchesPublicado em 31/05/2022, às 15:39 - Atualizado em 06/07/2022, às 17:15
Ilustração: Shutterstock

“Todo paciente que você vê é uma lição muito maior do que a doença da qual ele sofre.” A frase de William Osler, médico canadense considerado o pai da medicina moderna, dá a dimensão da importância que é olhar o ser humano por trás do paciente dentro do hospital ou do consultório.

Empatia, compaixão e até carinho, muitas vezes, são atitudes que fazem toda a diferença quando estamos diante de uma doença. E muitas vezes isso vem de profissionais que também estão aprendendo a cuidar dos próprios filhos, construindo carreiras e cuidando da dor dos outros enquanto se empenham em ser mães.

Mulheres hoje representam a maioria da força de trabalho na área médica, com cerca de 65% da mão-de-obra disponível. Mesmo assim, elas ainda sofrem com o preconceito e a falta de apoio ao tentarem ser mais do que mães.

Confira a seguir o depoimento de algumas mulheres e mães contando suas trajetórias profissionais e como fazem para equilibrar o trabalho de cuidar da saúde dos outros com as necessidades da própria família. 

* com as repórteres Raquel Ribeiro, Samantha Cerquetani e Tiemi Osato

Foto: arquivo pessoal

Mãe pela primeira vez aos 36 anos, Lygia da Veiga Pereira, 57,  pesquisadora e professora universitária, sente-se privilegiada por ter tido tempo para se dedicar à maternidade. Atualmente, a cientista também está à frente do Projeto DNA do Brasil que, com apoio de Dasa, visa sequenciar os genomas dos brasileiros. 

“Fui mãe quando minha carreira já estava consolidada atuando como professora na USP [Universidade de São Paulo]. Após a licença-maternidade, tive horários flexíveis, o que facilitou muito, mas mesmo assim foi um período difícil emocionalmente”, diz. 

Mãe de Gabriela, hoje com 19 anos, e Maria, atualmente com 17, ela teve receio de não conseguir conciliar a carreira com a maternidade. “Nos primeiros anos as crianças exigem mais atenção dos pais e é preciso organização para lidar com tantas demandas. A rotina sempre foi muito puxada, como a de qualquer outra mãe, mas foi uma experiência recompensadora”.

Para ela, o mercado de trabalho ainda é injusto com as mães e há muito preconceito e desigualdade. “A minha sorte é que sempre fui julgada pela minha produtividade e não pela quantidade de horas que trabalhava. Não é justo precisar escolher entre ser mãe ou ser uma profissional de sucesso e ainda lidar com a culpa e a frustração”, completa. 

Foto: arquivo pessoal

Criadora da Classificação de Chammas para diagnosticar nódulos na tireoide, Maria Cristina Chammas vivia totalmente dedicada ao trabalho. Até que, aos 33 anos, pouco antes de finalizar o doutorado, decidiu que, além de pesquisadora e radiologista, também gostaria de ser mãe. 

“Até um certo ponto da minha vida eu nem sabia se teria filho”, conta. “Mas, quando decidi, me planejei e me estruturei, realmente escolhi o momento”, afirma. 

Após o nascimento de Daniel, Maria Cristina abriu mão da carreira no setor privado para ter mais horas disponíveis para o bebê e manteve sua atuação apenas no ambiente universitário. Nessa época, a médica contava com uma sólida rede de apoio formada pelos pais, família e empregados. Mesmo assim, não foi fácil. 

Se ele tinha alguma reação à vacina, por exemplo, a culpa batia por não ir trabalhar. Mas, se ia cumprir seus compromissos, sentia-se mal de deixar a criança em casa doente. “Sempre me sentia culpada, nunca estava tranquila”, afirma.

Apesar da sobrecarga, Maria Cristina afirma que sua visão de mundo mudou após a maternidade. “Você começa a entender melhor as pessoas”, acredita. Como exemplo, ela cita um episódio em que Daniel, então com 3 ou 4 anos, assistiu a “Alice no País das Maravilhas” e identificou a mãe como o Coelho Branco, que carrega um relógio para lá e para cá, sempre dizendo “eu tenho pressa”, “é tarde”, “está na hora”.

“Sempre fui muito rápida e ágil, mas percebi que tinha que ser menos”, conta. Assim, ela se tornou mais complacente, por exemplo, com os residentes do hospital — e passou, inclusive, a enxergá-los de uma forma um pouco mais maternal. “A gente aprende muito com as crianças, e o que o meu filho mais me ensinou é que cada um tem o seu tempo”, finaliza.

Foto: arquivo pessoal

Uma fatalidade cirúrgica após a retirada de um tumor ósseo no crânio, em 2020, fez com que a designer especialista em acessibilidade digital Janaína de Siqueira Bernardino, 39, perdesse completamente a visão nos dois olhos. 

“Voltei da anestesia e o médico perguntou: você está bem? Eu disse que estava, porém sem enxergar nada”, conta Janaína, que foi diagnosticada com nervo óptico atrofiado, lesionado inesperadamente durante a retirada do tumor.

Mãe de Miguel Francisco, hoje com 3 anos, Janaína ficou apreensiva sobre o futuro. “Eu lembro que meu marido, Flávio, levou a fraldinha dele pra mim no hospital e eu só conseguia me questionar: como vou ver meu filho?”, lembra.

Para que a descrição de Miguel ficasse para sempre na memória de Janaína, Flávio fez uma surpresa. “Eu enxerguei meu filho só até um ano e meio. Ele fez uma música para que eu sempre lembre do Miguel e nosso amigo Rodrigo fez uma melodia e gravou”

Como era de se imaginar, a designer teve que reaprender a fazer diversas coisas da sua rotina. Entre tantas questões, Janaína conta que uma das que mais lhe marcou foi reaprender a fazer a mamadeira de Miguel. 

“Eu não enxergava mais o ml da mamadeira. Por isso, meu esposo fez uma ‘marquinha’ no pote para que, ao passar o dedo, eu soubesse até onde deveria colocar o líquido e misturar o pó para poder dar a mamadeira”, diz. 

Diante de tudo que viveu, a designer conta que, além do marido, Miguel foi sua maior inspiração para superar os desafios. “Ele queria uma mãe, ela enxergando ou não. Com apenas um aninho, ele não entendia que a mãe estava cega. Não fazia diferença para ele. O que ele queria era colo, era o que eu podia dar e também foi o que me impulsionou, pois precisávamos ir em frente”, afirma, com um sorriso.

Foto: arquivo pessoal

De tanto ver a mãe sair para trabalhar em um hospital, onde atuava como pediatra, Gabriela Figueiredo Melara também decidiu que gostaria de ser médica. Menos pediatra. “Eu tinha um bloqueio, acho”, diz, rindo. 

Ao final da faculdade, no entanto, ela decidiu seguir os mesmos passos da mãe. “É um ambiente diferente, mais animado, você chega com as crianças sorrindo para você”, conta. 

Atuando na UTI neonatal na Maternidade Brasília, no entanto, Gabriela diz que aprendeu a valorizar ainda mais a saúde dos dois filhos, Gustavo, de 5 anos, e Henrique, de 3. “Agradeço todos os dias por tê-los bem de saúde ao meu lado, pois todos os dias eu vejo o que poderia ter dado errado”, afirma. 

Embora sempre tenha tido um carinho especial por todas as crianças e bebês que passaram por suas mãos, a médica afirma que, depois da maternidade, a forma de cuidar e o olhar sobre os pacientes ficaram mais apurados. “Passei a me colocar no lugar daquelas mães porque agora eu sei o que elas sentem, eu sei a dor no coração”, diz. 

Essa empatia, às vezes, transborda e é difícil lidar com os sentimentos, especialmente diante da perda de algum bebê. Nessas horas, Gabriela pensa em desistir e buscar uma rotina mais tranquila. “Mas aí sempre chega a mensagem de uma mãe com a foto de uma criança que foi um bebê da UTI e hoje está bem, e minhas forças se renovam. Sinto que estou cumprindo meu papel.”

Foto: arquivo pessoal

Gerente de enfermagem no Hospital 9 de Julho, a enfermeira Rosana Pires tem 35 anos de formada, e dedicou-se a vida toda à enfermagem. “Quando tive minha primeira filha, [Gabriela, hoje com 28 anos] mantive os plantões e a deixava com a minha mãe”, conta. 

Com o nascimento da segunda filha, Júlia, hoje com 23, Rosana decidiu reduzir a carga de trabalho para dar mais atenção às meninas. Mas o destino, inesperado, havia planejado outra coisa para eles. “Meu marido foi demitido, precisei voltar à carga para manter a casa enquanto ele passou a cuidar delas”, diz. 

Mesmo assim, a enfermeira se esforçou para manter a proximidade com as filhas. “Eu deixava recadinhos, ligava para conversar. Tentei estar presente mesmo quando não estava fisicamente ao lado delas”, diz. 

O esforço para equilibrar as duas jornadas seguiu intenso quando Rosana decidiu fazer um mestrado em sua área. Os trabalhos então eram feitos de noite, já que, durante o dia, ela tentava se dedicar à família o quanto era possível. 

“Acredito que esse exemplo foi muito importante para mostrar que nós, adultos, passamos por desafios e insucessos, e que nossos filhos também terão que lidar com isso no futuro”, afirma ela, que continua sendo uma “mãezona” das filhas mesmo agora, depois de adultas. 

Foto: arquivo pessoal

Glinda Farias é daquelas pessoas que motivam a gente a fazer mais. A ser mais. Não pela fala eloquente, mas pela fibra que não falta a essa paraense. Se na parte da manhã ela é assistente social, ajudando crianças e adolescentes que tiveram seus direitos violados, à tarde ela é os braços, as pernas e os olhos da Rede Mondó.

“O Mondó é um programa, apoiado pela Dasa, que visa fortalecer a educação. Mas se tem criança passando fome ou com outros direitos violados, ela não vai aprender. Então a gente trabalha para fortalecer a saúde e a moradia”, conta. Recentemente, ajudou a instituir um curso de primeiros socorros para professores e profissionais da saúde da região, em parceria com a secretaria da saúde e postos e hospitais da área rural.

É com suas andanças e conversas pela região que ela constrói as pontes entre a comunidade e os parceiros da ONG. “A gente acaba tendo um olhar mais sensível. Eu sei das minhas dores e da minha comunidade”. Olhar esse que permanece alerta mesmo aos finais de semana, quando trabalha em uma ONG voltada a pessoas com deficiência e outra que atende famílias do lixão.

O maior desafio da carreira veio na pandemia, quando foi chamada para trabalhar em um hospital de campanha. “Eu vi 21 pessoas morrerem e eu acolhi as famílias na hora da entrega dos corpos. Por que é isso: muitas vezes a gente não conseguia devolver com vida… Foi ali que percebi que era forte e capaz”.

Mas, Glinda, e sua família? Ela se diverte com a pergunta e explica que sempre reserva um tempo ao filho Otávio, de 9 anos. Mãe solo, afirma que só consegue dar conta de tudo graças à sua rede de apoio, formada pelos pais e pela irmã. “O que eu posso dar ao meu filho no futuro, depende do que eu faço hoje”. 

Foto: arquivo pessoal

“Como mãe e executiva, o que é inegociável para mim?” Essa pergunta é um dos guias de Andrea Dolabela, diretora de Produtos, Marketing e Experiência da Dasa. Com mais de 20 anos de experiência como líder de marketing, Andrea acompanhou diversos momentos das mulheres no mercado de trabalho, mas nota que algo nunca mudou. “Vejo que sempre se espera que elas desempenhem um certo papel”, afirma. 

Mãe da Helena, de 11 anos, e do Rafael, de 8 anos, Andrea conta que, quando falamos em líderes mulheres, a cobrança parece ainda maior. “Parece que temos que ser perfeitas e estarmos sempre disponíveis para sermos adequadas ao cargo que estamos ocupando”, afirma.

Como qualquer executiva C-Level, Andrea viveu inúmeras situações em que, para conseguir ascender profissionalmente, precisou fazer escolhas em que maternidade e trabalho estavam em lados opostos. “A liderança é um grande desafio para a mulher que é mãe”, afirma Andrea. “É preciso ter coragem para abrir e ocupar um espaço em que, para ser bem sucedida, podemos fazer do nosso jeito, sendo nós mesmas e não seguindo algum modelo masculino”, diz. 

Recentemente, por exemplo, a filha Helena tinha uma apresentação de teatro bem no dia em que Andrea também teria um jantar de negócios importante. A escolha? “A peça da minha filha, sem arrependimentos”, diz, segura. 

Nesse caso, diz ela, o inegociável era participar desse momento tão importante da vida da menina. Embora pareça difícil para as mulheres, que estão acostumadas sempre ter que dar conta dos dois universos, Andrea conta que delimitar limites é não apenas saudável, necessário para melhorar sua atuação como mãe e profissional. “Me sinto mais autoconfiante quando conseguimos equilibrar os dois lados, sem ressentimentos”, acredita. 

Em tempo: muitos colegas homens e com filhos foram para o jantar de negócios. 

Para ela, a atual cultura de trabalho “always on” é um fardo especialmente pesado para as mulheres mães, embora, atualmente, seja aceitável dizer que não vai a um happy hour ou então trabalhar até mais tarde por causa dos filhos. 

“Mas sei que isso é um privilégio, nem todas têm essa possibilidade”, afirma. “Mulheres, geralmente, precisam trabalhar mais, entregar mais, para conseguir estar nesse lugar em que podem escolher ficar com a família”, acredita.

Para a diretora, as empresas que contratam mulheres sem olhar para os desafios de equilibrar vida pessoal e profissional estão promovendo uma equidade vazia. “É preciso olhar para esses desafios, pois todos precisamos de apoio para dividir esses papéis”, acredita. “E, sim, os filhos devem ter um papel importante nessa conta”, finaliza.

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