Como o metaverso pode revolucionar a medicina?
Essa tecnologia promete ser o carro-chefe de profundas transformações
Se você acessou a internet nos últimos meses, certamente deve ter encontrado com a palavra “metaverso” em algum momento. O conceito ganhou fôlego desde que, em outubro de 2021, Mark Zuckerberg, CEO do então Facebook, anunciou que a empresa passaria a chamar Meta – uma alusão ao novo foco da companhia.
Neste artigo, você vai ler:
Desde então, não apenas a Meta como outras muitas empresas estão investindo pesado no metaverso – um conceito ainda em construção e que pode ser descrito como um universo virtual em que usuários interagem em espaços compartilhados por meio de avatares utilizando tecnologias como realidade aumentada, virtual e mixada e web 3.0. As apostas são altas: no que depender da Meta, essa vai ser a nova “realidade” em que iremos trabalhar e interagir socialmente.
E, dentre as muitas possibilidades, uma das mais interessantes é como essa nova tecnologia poderá mudar a medicina como conhecemos hoje, oferecendo novas possibilidades de treinamento e interação entre médico e paciente. “É ainda recente, mas o metaverso certamente irá criar novas formas de lidar com questões como planejamento de cirurgias e até o ensino da medicina”, acredita Heron Werner, coordenador do laboratório de Biodesign Dasa/PUC-Rio.
Entendendo o metaverso
Ok, já falamos sobre o conceito de um universo paralelo e virtual em que as interações ocorrem por meio de avatares. Mas, assim como a tecnologia, o conceito também é novo e está aberto a interpretações. A Microsoft, por exemplo, descreveu o metaverso como “um mundo digital que é habitado por cópias digitais de pessoas, lugares e coisas”. Zuckerberg, por outro lado, é mais poético e afirma que o metaverso “pode ser quase tudo o que você imagina”.
Todos têm um consenso: o metaverso é um local virtual, um universo que existe de forma digital e que é construído de acordo com as nossas necessidades e vontades. Só que isso não é novo. O termo “metaverso” já havia aparecido em um livro de ficção científica chamado “Snow Crash” (chamado no Brasil de “Nevasca”), do americano Neal Stephenson e que foi lançado em 1992.
Na obra, o metaverso é uma plataforma de realidade virtual (RV) considerada sucessora da internet e bastante popular pelas interações com os usuários e seus avatares. Stephenson, aliás, ficou surpreso quando o Meta/Facebook anunciou o metaverso e deu uma declaração em seu Twitter dizendo que não tem nada a ver com o projeto de Zuckerberg, “além do fato óbvio de que eles estão usando um termo que eu cunhei em ‘Snow Crash’”, afirmou.
O próprio conceito de realidade virtual imersiva já existia antes, de acordo com o engenheiro e especialista em realidade aumentada Márcio Catapan, professor da UFPR (Universidade Federal do Paraná), que aponta diferenças importantes para outras realidades virtuais antigas, como o jogo The Simms. “No metaverso, você não vê o seu avatar realizando uma ação. Você é o avatar, sente, enxerga como ele, e o ambiente é modelado de acordo com o que você quer, sendo um ambiente que realmente existe ou criado totalmente do zero”, explica.
À primeira vista, pode parecer algo novo, especialmente para quem não costuma utilizar a internet para esse tipo de interação. Mas é uma tecnologia que já vem sendo desenvolvida há algum tempo, particularmente no universo dos games e jogos digitais – um mercado que movimentou, apenas em 2021, cerca de US$ 175,8 bilhões, de acordo com dados da consultoria Newzoo.
Metaverso e medicina
Acessar o metaverso não é tão simples como ligar o computador e colocar um fone de ouvido. É preciso usar um óculos especial que torne possível a imersão nessa realidade virtual.
Não à toa, há oito anos o então Facebook adquiriu a Oculus VR, fabricante do Oculus Rift, um óculos utilizado então para jogos online. À época, o Zuckerberg já dizia que esperava que a realidade virtual fizesse parte da vida de bilhões de pessoas no mundo.
Enquanto a Meta não abre as portas do seu metaverso, no entanto, a realidade imersiva virtual já vem sendo utilizada em outros campos, como educação e medicina. Neste último, médicos e especialistas da área da saúde enxergam na plataforma online uma área com grande potencial de uso em diversas frentes, desde atendimentos a pacientes até tratamentos, planejamento de cirurgias e treinamentos diversos.
Há estudos, por exemplo, mostrando que o uso desse tipo de tecnologia pode ajudar a reduzir a dor, seja ela crônica ou até após uma cirurgia. Em outra pesquisa recente, o uso de cenas de natureza em plataforma de realidade virtual imersiva ajudou a reduzir o estresse de trabalhadores da saúde na linha de frente da covid-19.
“A realidade virtual pode ser usada até para potencializar os efeitos de meditações guiadas e sessões de mindfulness [prática de ‘atenção plena’, que nos ensina focar no momento presente de forma consciente]”, afirma Rodrigo Costa Oliveira, psicólogo hospitalar do Hospital Universitário Onofre Lopes (Huol/UFRN), que faz parte da Rede Ebserh, no Rio Grande do Norte.
Mas os ganhos não param por aí. Heron Werner cita como exemplo um caso em que irmãs gêmeas brasileiras iriam passar por uma cirurgia de separação bastante delicada e os médicos se reuniram no metaverso com um neurocirurgião especialista da Inglaterra para planejar o procedimento.
“A reconstrução 3D permitiu a discussão do caso de forma mais dinâmica e realista, algo que não seria possível por uma simples ligação telefônica”, afirma ele, que já chegou a dar aula em uma sala virtual “temática” curiosa: um órgão humano.
+ Saiba mais: O que acontece quando médicos se encontram no metaverso?
O professor Márcio Catapan também acredita que reunir especialistas de qualquer parte do mundo em uma sala virtual com ferramentas moldadas em 3D – com base nas peças reais – vai poupar custos e ainda acelerar os procedimentos médicos.
“Há economia tanto de tempo, já que é possível se conectar com o profissional rapidamente, como de dinheiro, pois a pessoa não vai precisar pegar um avião, se hospedar em algum lugar do mundo e só então iniciar o trabalho”, afirma o professor.
Por fim, o período de isolamento fez serviços como a telemedicina e o atendimento remoto crescerem muito. Nesse sentido, o metaverso seria mais um recurso para que o paciente fosse atendido de forma online e com uma interação mais próxima do que as chamadas de videoconferência – inclusive com a possibilidade de mostrar exames de imagem de forma bastante realista.
Como fica a saúde mental?
Toda nova tecnologia também traz novos desafios. Com o metaverso, não é diferente. Se por um lado já vislumbramos avanços consideráveis na medicina, por outro, precisamos ficar atentos a eventuais riscos. “É uma ferramenta que tem seu lado viciante. É fácil entrar e passar horas imerso lá dentro”, diz Werner.
Podemos citar aqui um campo em que a realidade imersiva já é usada há muito tempo: o dos games online. O uso contínuo desse tipo de tecnologia levou alguns indivíduos a desenvolver um vício no universo online – um quadro inclusive reconhecido como doença pela OMS (Organização Mundial da Saúde) desde 2018. Se isso vai ou não acontecer quando o Metaverso se popularizar, ainda é um mistério. “Isso deve ser estudado mais para frente, quando o uso dessa tecnologia se tornar mais comum”, acredita o especialista.
No que depender do CEO da Meta, isso pode demorar um pouco. Durante o festival de inovação SWSX 2022, que aconteceu no início do ano em Austin, nos EUA, Zuckerberg afirmou que pretende formatar seu metaverso para estar totalmente operante até o fim dessa década.
Sua proposta, claro, inclui abrir um novo universo em que exista um fluxo de marcas comercializando produtos e produtores de conteúdo atuando como modelos dessas empresas dentro do metaverso – algo semelhante ao que já acontece hoje no Instagram, mas agora de forma imersiva.
Nesse sentido, podemos ter alguns riscos inerentes ao Instagram potencializados no Metaverso. Um deles é a busca pelo ideal do corpo perfeito, que pode ser alcançado na medida em que um avatar é “montado” conforme a sua expectativa. “O perigo de ficar preso a esse corpo ‘completo’ e perfeito, a esse universo, é muito grande, porque é realmente muito tentador”, acredita Bárbara Santos, psicóloga da clínica Holiste, em Salvador, na Bahia.
Nesse sentido, durante o festival SWSX, a futurista Amy Webb, uma das mais respeitadas quando o assunto é tendências digitais, fez uma previsão sombria durante um painel: a de que a criação de versões digitais das pessoas levará a um “distanciamento cada vez maior entre a pessoa no mundo físico e a projetada no online.”
O psicólogo Rodrigo Costa Oliveira ainda lembra que a redução de contatos sociais, especialmente na infância e adolescência, pode fazer com que as pessoas tenham dificuldades em viver no mundo real.
“O mundo virtual nos dá uma perfeição que não existe, e a frustração quando eu passo para a realidade pode ser muito mais violenta se eu não sou treinado a isso durante a vida”, afirma ele, que vê ainda um risco de não desenvolvermos a habilidade de sentir empatia pelo próximo.
Por outro lado, o fato de sabermos conscientemente que aquele universo imersivo é virtual passa a sensação de que se vive um personagem – e algumas pessoas entendem isso como uma autorização para mostrarem seu pior lado sem medo. “É por isso que é mais fácil ser agressivo nas redes sociais”, afirma o psicólogo.
Em novembro de 2021, por exemplo, quando a Meta abriu seu metaverso, o Horizons World, para testes, uma usuária, ou melhor, seu avatar, foi sexualmente assediada durante sua experiência imersiva, mostrando que ainda há muito a ser feito para que o metaverso seja seguro para grupos que já sofrem com violências no mundo real.
Para Santos, no entanto, ainda é muito cedo para dizer o que vai ou não acontecer pois ainda não existem dados de usuários dessa plataforma. Mas o mundo virtual que temos hoje, o das redes sociais, já dá pistas importantes do que acontece quando o ser humano passa tempo demais nesse ambiente. “E é importante termos esse tempo de questionamento, de dúvidas, para que possamos nos preparar para o que vem aí”, acredita.