Transplantes de órgãos salvam vidas
Atualmente existem mais de 50 mil pessoas esperando pelo procedimento no Brasil
Era um domingo à tarde quando Marli Quirino decidiu ir até a padaria. Quando estava na calçada, prestes a atravessar, foi atingida por um carro desgovernado. Ela não teve tempo de correr. Apesar do rápido atendimento, no hospital foi constatado traumatismo craniano e morte encefálica (quando o cérebro para de funcionar).
Neste artigo, você vai ler:
Aos 37 anos, sua história acabava ali, mas não totalmente. Seu pai sabia que a sua dor poderia se transformar em esperança para muitos: decidiu doar seus órgãos, salvando diversas vidas de uma só vez.
O transplante de órgãos é considerado algo revolucionário na medicina. Trata-se de um procedimento cirúrgico, que consiste na reposição de um órgão (coração, pulmão, rins, pâncreas ou fígado) ou tecido (medula óssea, ossos ou córneas) de uma pessoa doente (receptor) por outro órgão ou tecido normal de um doador.
Para entender como o transplante (e a doação) de órgãos é algo possível, é preciso voltar um pouco no tempo. Os cientistas estudaram e tentaram por décadas substituir um órgão por outro, sem comprometer a vida do indivíduo.
Mas, apenas em 1954, ocorreu a primeira operação bem-sucedida de transplante de rim nos EUA. Na década seguinte, fígado, coração e pâncreas também foram transplantados.
De acordo com João Eduardo Nicoluzzi, médico especialista em cirurgia e transplante de fígado, pâncreas e vias biliares e professor da PUCPR (Pontifícia Universidade Católica do Paraná), o transplante de órgãos foi uma das maiores evoluções da medicina.
“Conseguir controlar a rejeição do órgão transplantado e a questão técnica cirúrgica foi um desafio que durou mais de 20 anos. Dos anos 1960 aos anos 1980, houve uma luta contra a rejeição e a favor de evoluções técnicas. Hoje impactam na vida de milhões de pessoas em todo o mundo, dando mais qualidade ao dia a dia”, explica.
A seguir, você confere detalhes sobre como funciona o transplante de órgãos, o que pode ser doado (e quem pode doar) e os cuidados após a cirurgia, além da inspiradora história de um transplantado Acompanhe!
O que pode ser doado e quem pode doar?
É importante destacar que existem dois tipos de doadores de órgãos: o doador em vida e o doador que foi diagnosticado com morte encefálica.
No primeiro caso, a pessoa precisa ter boas condições de saúde para doar o órgão ou tecido sem comprometer sua qualidade de vida ou do receptor e é preciso uma autorização judicial. Já a doação realizada após a morte encefálica, ocorre geralmente após o doador sofrer algum trauma, como o craniano.
O doador vivo pode doar:
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Um dos rins;
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Medula óssea, por meio de aspiração óssea ou coleta de sangue;
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Parte do fígado (cerca de 70%);
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Parte do pulmão.
O doador falecido pode salvar cerca de 8 vidas ao doar:
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Coração;
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Pulmão,
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Fígado;
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Rins;
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Pâncreas;
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Córneas;
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Intestino;
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Pele;
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Ossos;
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Válvulas cardíacas.
Vale destacar que o transplante de órgãos apenas é indicado quando não existem outras alternativas de tratamento. Geralmente, o órgão afetado vai perdendo suas funções e prejudicando a qualidade de vida do indivíduo.
Doenças que podem levar ao transplante:
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Coração – Infartos, hipertensão arterial e doença de Chagas;
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Fígado – Cirrose e tumores malignos;
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Pulmão – Enfisema pulmonar e fibrose pulmonar;
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Pâncreas – Diabetes tipo 1;
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Rins – Diabetes e hipertensão arterial grave.
Ranking dos órgãos mais doados
Você sabia que existem mais de 50 mil pacientes esperando por um transplante no Brasil? Além disso, em 2021, mais de 4,2 mil pessoas morreram na fila, aguardando um órgão compatível. E no primeiro semestre de 2022, 44% das famílias brasileiras desautorizam a doação de órgãos dos seus familiares que tiveram morte encefálica.
“Durante a pandemia, tivemos uma redução acentuada nas doações de órgãos – cerca de 30% do total. Geralmente, os mais idosos, acima de 75 anos, pessoas infectadas, com doenças crônicas e com os órgãos deteriorados não podem doar os órgãos”, explica Ilka Boin, coordenadora da Unidade de Transplante de Fígado da Unicamp e diretora da ABTO (Associação Brasileira de Transplante de Órgãos).
Segundo levantamento da ABTO, os órgãos mais doados entre janeiro e junho de 2022 no país foram:
Fila do transplante: como funciona?
No Brasil, a fila de espera por um órgão é organizada pelo SNT (Sistema Nacional de Transplante). Cabe a ele, regulamentar, controlar e monitorar o processo de doação e transplantes realizados no país.
“O SNT trabalha dentro de normas e leis que tornam o sistema de transplantes de órgãos no Brasil um dos maiores do mundo. Ele permite a equidade na hora de decidir onde alocar um órgão de um doador, baseado exclusivamente em critérios técnicos e clínicos, independente da origem, da condição financeira do receptor. É um sistema em que a população pode confiar”, explica Paulo José de Medeiros, médico do Hospital Universitário Onofre Lopes, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Não há uma regra específica para definir quem recebe primeiro todos os órgãos e tecidos. Na maioria das vezes, quem precisa de um fígado, coração ou pulmão é avaliado de acordo com a gravidade e entram no topo da lista. Já em relação ao rim, é necessário checar a compatibilidade entre doador e receptor. Por fim, o pâncreas segue o tempo de inscrição na fila.
As crianças têm prioridade quando o doador é da mesma faixa etária ou quando estão concorrendo com adultos. Além disso, a recomendação é que o transplante seja realizado no mesmo estado que a pessoa reside, mas há exceções, como falta de estrutura para realizar a cirurgia.
Já no caso de doação em vida, funciona de uma forma diferente: não há a etapa da fila, pois a doação é feita para um indivíduo específico (geralmente familiar). Dessa forma, é preciso encontrar alguém compatível e disposto a realizar o procedimento.
A vida pós-transplante
Receber a notícia de que sua hora chegou na fila do transplante é o sonho de muitos brasileiros. No entanto, ainda há o risco da rejeição do órgão após o procedimento.
Isso acontece porque o sistema imunológico reconhece o novo órgão como um corpo estranho, que precisa ser combatido. Tal situação pode ocorrer logo após o transplante ou algum tempo depois.
Geralmente, casos de rejeições leves ou moderadas são resolvidas com o uso de alguns medicamentos. Porém, quando a rejeição é grave pode afetar o órgão transplantado, levando até mesmo a um novo transplante.
Vale destacar que toda pessoa que se submete a uma cirurgia e anestesia geral corre riscos, mas estes são minimizados com os exames pré-operatórios e os avanços nas técnicas anestésicas e cirúrgicas, que tornaram o procedimento muito seguro. Além disso, o risco de infecção retorna ao nível anterior ao do transplante em cerca de 80% dos indivíduos, depois de seis meses.
“Após o transplante, os remédios imunossupressores são prescritos para diminuir a chance de rejeição do órgão que ele recebeu. Os pacientes transplantados devem usar medicações por toda a vida. O abandono da medicação pode ter sérias consequências como a perda do órgão transplantado e outras complicações”, explica Caroline Reigada, nefrologista e especialista em Medicina Intensiva pela Associação de Medicina Intensiva Brasileira.
A longo prazo, pessoas que usam medicamentos para controlar a rejeição podem ter mais chance de desenvolver tumores – como de pele ou de órgãos sólidos.
Portanto, é fundamental que seja realizada uma monitorização contínua desses pacientes, mesmo anos após o transplante. Mas, a boa notícia é que, na maioria das vezes, eles vivem sem limitações e com qualidade de vida por vários anos.
A importância da doação de órgãos
Você sabia que um único doador de órgãos e tecidos pode beneficiar pelo menos 10 pessoas? O Setembro Verde é o mês de conscientização sobre a importância da doação de órgãos. A cor verde da campanha representa a esperança de uma nova vida.
O Brasil é considerado referência na área e possui o maior sistema público de transplantes do mundo disponibilizado pelo SUS (Sistema Único de Saúde). No entanto, ainda existe falta de informação da população sobre o assunto, o que pode atrapalhar a autorização para que o familiar falecido seja declarado doador de órgãos.
Quem deseja doar seus órgãos já deve comunicar a família sobre essa vontade. “Os profissionais de saúde precisam orientar adequadamente e tirar dúvidas sobre o processo de doação de órgãos, além de acolher os indivíduos que perderam algum ente querido. É uma via de mão dupla: hoje a pessoa recebe um órgão, mas pode também ser doadora em outra ocasião”, destaca Boin.
Vale reforçar que não há custos para a família quanto à doação de órgãos e tecidos, bem como também não há qualquer ganho material. A legislação brasileira exige que a doação seja um ato completamente altruísta. É uma forma de amor ao próximo, mesmo após a morte.
Revolução em transplantes
A cada dia, surgem novas tecnologias e possibilidades promissoras na área de transplantes. Atualmente, diversas inovações já chegam aos centros cirúrgicos e mudam as vidas de milhares pessoas todos os dias.
Foi o que aconteceu no Hospital São Lucas Copacabana, da Dasa, a maior rede de saúde integrada do Brasil. Conduzido por Eduardo Fernandes, cirurgião e especialista em transplante de órgãos do abdome do hospital, no local foi realizada uma cirurgia pioneira na América Latina: a de transplantes intervivos (doador vivo) em casos de câncer colorretal com metástase no fígado.
O transplante foi realizado no empresário Fabiano Rufino, 47, que recebeu parte do fígado de seu filho mais velho, Fábio Ribeiro, 22. O procedimento ocorreu após ser constatado que cerca de 80% do fígado estava lesionado por metástases decorrentes de um câncer colorretal.
De acordo com Fernandes, responsável pelo novo protocolo, anteriormente a única opção para esses pacientes era a retirada da parte do fígado atingida pelo tumor. Porém, ao tomar todo o órgão, não havia nada mais a ser feito. “O transplante beneficia pacientes que apresentam lesões metastáticas no fígado que são consideradas inoperáveis”, diz.
O protocolo pioneiro adotado no São Lucas Copacabana teve a chancela dos médicos noruegueses e foi feito em parceria com a Universidade de Oslo.
“Até o momento, já ocorreram quatro procedimentos nos Estados Unidos e um caso no Canadá, na Turquia e na África do Sul. Por ser um caso de alta complexidade, exige uma equipe qualificada, estrutura adequada e um serviço de saúde especializado em transplante e oncologia. Com isso, conseguimos melhorar a sobrevida e qualidade de vida das pessoas e ter resultados significativos”, finaliza Fernandes.
Referências: Aliança Brasileira pela Doação de Órgãos e Tecidos; Associação Brasileira de Transplante de Órgãos e Ministério da Saúde.