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    Ayahuasca pode ajudar pessoas com depressão?

    Estudos preliminares com chá alucinógeno sul-americano têm resultados promissores

    Por Tiemi OsatoPublicado em 23/06/2022, às 10:55 - Atualizado em 25/05/2023, às 14:02
    Foto: Shutterstock

    A ciência psicodélica tem conquistado cada vez mais espaço quando o assunto é saúde mental. Em 2019, a Food and Drug Administration (FDA), agência reguladora dos Estados Unidos, aprovou o spray nasal de ketamina para depressão. Agora, acredita-se na possibilidade de o MDMA (3,4-metilenodioximetanfetamina) obter o aval para tratamento de estresse pós-traumático. A expectativa também é grande quanto ao futuro da psilocibina, que está sendo alvo de estudos maiores para depressão. E, no Brasil, quem se destaca é a ayahuasca.

    Aqui ainda não se espera a aprovação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para uso terapêutico, porque temos muita estrada para percorrer com os estudos. Mesmo assim, as notícias têm sido animadoras. Para entender melhor tudo isso, vamos voltar para o finalzinho do século 20.

    Era 1994 quando a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) começou a estudar a ayahuasca, uma bebida preparada a partir de duas plantas — Psychotria viridis (chacrona) e Banisteriopsis caapi (cipó jagube ou mariri) — e utilizada em contextos religiosos por indígenas da América do Sul e praticantes do Santo Daime e da União do Vegetal. 

    Foto: Shutterstock

    Em conjunto com a Universidade da Califórnia, os brasileiros realizaram um trabalho pioneiro, em São Paulo, que constatou a segurança do uso de ayahuasca em rituais religiosos. 

    Para isso, foi feita uma avaliação aprofundada de adolescentes, contemplando aspectos como personalidade, características, estado físico e condição mental. Em seguida, os cientistas compararam o grupo que tomava ayahuasca com um grupo que nunca havia experimentado a substância. 

    “Para nossa surpresa, os adolescentes que usavam ayahuasca estavam melhor de saúde mental e física do que os que não usavam”, conta o psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira, pesquisador e professor na Unifesp. “Foi um resultado muito promissor, porque esperávamos que os indivíduos estivessem iguais”, complementa. 

    Publicado em 2005 no periódico Journal of Psychoactive Drugs, esse foi o primeiro estudo no mundo a sugerir que adolescentes que ingeriam ayahuasca tinham menos ansiedade e depressão. 

    Outra pesquisa da Unifesp também demonstrou a segurança da ayahuasca em adultos, mas Silveira chama atenção, em especial, para o trabalho com os mais jovens, já que são estes os mais vulneráveis a eventuais complicações. 

    De que forma a ayahuasca atua no organismo humano?

    O aspecto pseudo-alucinógeno da ayahuasca se deve ao psicodélico conhecido como DMT (ou N,N-dimetiltriptamina), encontrado na Psychotria viridis. A substância é chamada de “psicodélico clássico” por atuar no nosso sistema de serotonina, um neurotransmissor presente no cérebro. 


    E o efeito psicoativo da ayahuasca não é só resultado da P. viridis, e sim da associação dessa planta ao cipó Banisteriopsis caapi, responsável por impedir que algumas enzimas do nosso corpo degradem a molécula de DMT por meio do metabolismo. 

    Como consequência, quem ingere ayahuasca pode ter mudanças nos sentidos e na cognição. “Os efeitos são variados, mas são comuns alterações na percepção de como você vê, ouve e sente”, afirma Palhano-Fontes.

    “De olhos fechados, você pode ver cenas mais complexas ou mais simples. Você também pode escutar sons de forma mais clara e mudar a maneira como sente e expressa emoções”, detalha.

    Como são realizados e o que mostram estudos com ayahuasca?

    Não existe um único modelo de pesquisa. Uma das aplicações clínicas investigadas atualmente tem como alvo, por exemplo, pacientes resistentes a tratamentos tradicionais para depressão.

    Geralmente, são pessoas que testaram ao menos duas medicações na dose correta e por tempo adequado, mas não tiveram a resposta esperada. 

    +LEIA MAIS: A alimentação na depressão e na ansiedade

    No Instituto do Cérebro, da UFRN, os pesquisadores conduziram um ensaio duplo-cego, randomizado e placebo-controlado (o “padrão ouro” para um teste de substância na indústria farmacêutica). Na prática, significa que um grupo de voluntários tomava ayahuasca e outro bebia placebo. 

    Isso era feito em um quarto hospitalar controlado, uma vez que, para a comunidade científica, está clara a importância do ambiente no uso de psicodélicos. “A gente tinha uma sala mais aconchegante, com poltrona para reclinar, iluminação mais baixa, quadros coloridos e uma playlist de música preparada para isso”, conta Palhano-Fontes. “E ficávamos em uma sala contígua para caso o voluntário precisasse entrar em contato com a gente.” 

    No estudo da UFRN, cujas descobertas foram publicadas nas revistas científicas Psychological Medicine e Frontiers in Psychiatry, os pesquisadores constataram efeitos antidepressivos por meio de questionários aplicados por psiquiatras aos voluntários e também investigando mudanças em biomarcadores sanguíneos relacionados à depressão. 

    Coletando amostras de sangue antes e depois do uso de ayahuasca, foi possível perceber que os participantes passaram a apresentar níveis de cortisol (hormônio ligado ao estresse que fica alterado na depressão) mais semelhantes ao de pessoas saudáveis.

    Outra variação foi vista na molécula BDNF (fator neurotrófico derivado do cérebro), relacionada à plasticidade cerebral. Em pacientes com depressão, costuma-se observar diminuição nos níveis de BDNF no sangue. Dois dias após a ingestão de ayahuasca, os pesquisadores constataram aumento de BDNF. 

    “A gente acredita que é um conjunto de fatores bioquímicos e subjetivos que podem estar causando esses efeitos antidepressivos”, diz Fernanda Palhano-Fontes. “Não estabelecemos uma relação de causa, mas observamos que experiências mais intensas de alterações na percepção, naquelas horas de efeito da ayahuasca, levaram a uma melhora clínica”, acrescenta. 

    Quais são os possíveis benefícios e riscos da ayahuasca?

    As evidências científicas disponíveis apontam que a ayahuasca não causa overdose e não há risco de adição. Além disso, reconhece-se que terapias com psicodélicos podem ser benéficas para indivíduos que não respondem a tratamentos convencionais já disponíveis no mercado e que essas substâncias têm potencial de produzir efeitos terapêuticos prolongados e com poucas doses. 

    “Às vezes, com duas doses dessas drogas, os efeitos terapêuticos (como o antidepressivo) aparecem em algumas horas e duram semanas ou meses”, comenta o biólogo Rafael Guimarães dos Santos, pesquisador e orientador no Programa de Pós-graduação em Saúde Mental da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo (FMRP-USP). 

    “É diferente dos fármacos tradicionais, que as pessoas, muitas vezes, têm que tomar todos os dias e demoram semanas a produzir o efeito terapêutico”, avalia Santos. “A principal vantagem dos alucinógenos seriam menos doses, efeitos mais prolongados e também com menos efeitos colaterais”, resume. 


    Isso porque há uma tendência genética que favorece o desencadeamento dessas condições quando ocorre uma exposição a drogas ou a algum estressor no âmbito social. “Por isso sempre tem que ser feita uma triagem dos voluntários que participam dos estudos”, esclarece Santos. 

    Qual é o futuro do uso terapêutico de ayahuasca?

    Em primeiro lugar, é necessário realizar mais estudos. Embora os resultados atuais sejam promissores, eles ainda precisam ser aprofundados e validados em populações maiores e mais diversas. 

    O ideal é analisar mais pacientes — que tenham características clínicas e culturais diferentes — e fazer trabalhos em vários centros de pesquisa, assim obtendo mais informações sobre segurança e eficácia. 

    Outra questão fundamental é a regulamentação. “A fronteira entre o uso recreativo e o uso terapêutico tem que estar muito clara”, opina Rafael Guimarães dos Santos. “Também deve ser determinado quem poderá aplicar as substâncias: se serão somente médicos e psicólogos”, exemplifica. 

    Aliado a isso, será preciso solucionar questões de propriedade intelectual, já que a ayahuasca é utilizada há milhares de anos por povos tradicionais. 

    A base para sustentar esses passos é o financiamento. “A maioria dos nossos estudos é feito em colaboração com os Estados Unidos e Europa, porque as nossas verbas do Brasil foram todas canceladas”, diz Dartiu Xavier da Silveira. 

    O psiquiatra ressalta ainda a importância dos psicodélicos como uma das principais vias de terapias alternativas sendo pesquisadas. E isso não apenas para depressão resistente a tratamento, mas também em casos de cuidados paliativos, tabagismo, ansiedade social e, agora, alcoolismo. 

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    Silveira, que trata dependentes químicos há mais de 40 anos, estima que cerca de 35% dos seus pacientes têm sucesso utilizando remédios de farmácia. Os outros 65%, porém, não respondem a tratamentos convencionais. 

    É por isso que, agora, o pesquisador dará início a um grande estudo, em parceria com a Universidade da Califórnia, para analisar o desempenho da ayahuasca no tratamento de dependências químicas. “Hoje a gente não pode falar que ayahuasca é um remédio para tratar o alcoolismo, mas espero poder dizer no futuro”, finaliza Silveira.

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