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Biologia sintética e o futuro da alimentação

Tecnologia poderá alterar a durabilidade de alimentos e a forma como são produzidos

Por Tiemi OsatoPublicado em 02/05/2022, às 13:06 - Atualizado em 25/05/2023, às 13:36
Biologia sintéticaIlustração: Shutterstock

Uma das várias mudanças geradas pela pandemia de covid-19 está na tecnologia. Diante da crise sanitária, pesquisadores intensificaram o uso de um dos maiores (e mais recentes) avanços científicos: a biologia sintética. 

A expressão pode até não ser muito familiar, mas já vemos esse tipo de conhecimento sendo empregado na produção de vacinas e no melhoramento de diagnósticos. E, para além das aplicações na área da saúde, isso também tem a ver com a nossa alimentação nas próximas décadas.  

A aposta da futurista Amy Webb, fundadora do Future Today Institute e palestrante do festival de inovação South by Southwest (SXSW), é de que, daqui a alguns anos, falaremos de biologia sintética como hoje falamos sobre inteligência artificial. 

Espera-se que esse ramo da ciência ganhe cada vez mais força e nos ofereça caminhos sustentáveis para atingir maior produtividade nos cultivos, obter alimentos mais ricos nutricionalmente, gastar menos recursos ambientais durante a produção e diminuir o desperdício alimentar. 

Mas o que é exatamente a biologia sintética? Bom, de forma simples e direta: é a engenharia da biologia. A ideia consiste em entender como funcionam determinados sistemas biológicos para, então, criar sistemas sintéticos com características benéficas aos humanos.  

E isso é feito por meio de diferentes técnicas e com auxílio de abordagens interdisciplinares vindas sobretudo da biologia, das ciências da computação e da engenharia. 

“A biologia sintética é vista como a tecnologia portadora do futuro”, afirma Luis Pacheco, líder do Grupo de Estudos em Genômica Funcional e Biologia Sintética da Universidade Federal da Bahia (UFBA). O professor ainda faz a seguinte comparação: se no século passado a química foi a grande revolução, agora é a vez da biotecnologia, sendo a biologia sintética uma das suas principais ramificações.

Iremos comer novos alimentos?

Embora seja relativamente recente, com surgimento no início dos anos 2000, a área carrega consigo grandes expectativas. Uma delas diz respeito ao que iremos encontrar nas prateleiras dos mercados. 

“Os alimentos provenientes da biologia sintética serão nutricionalmente mais ricos, com vida útil mais longa e desprovidos de ingredientes nocivos, como alérgenos para populações suscetíveis”, declara Daniela Bittencourt, pesquisadora no Laboratório de Biologia Sintética da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia. 

AlimentosFoto: Shutterstock

Na Europa, por exemplo, um trigo não transgênico e sem glúten — portanto adequado a pessoas celíacas — está em fase de testes. Nos Estados Unidos, um champignon que demora mais para ficar marrom e apresenta maior durabilidade para consumo está aguardando a aprovação da Food and Drug Administration (FDA), agência reguladora do país. 

Há mais mercadorias em estudo, que vão desde café naturalmente descafeinado a batatas que não escurecem ao serem cortadas e pães que não representam um perigo à saúde caso fiquem um pouquinho mais torrados (isso porque, por meio da biologia sintética, é possível desenvolver um trigo que não libera toxinas quando queimado). 

Entre aquelas que estão em estágio mais avançado e disponíveis para compra estão os hambúrgueres derivados de materiais vegetais que parecem de origem animal (e até sangram), da empresa norte-americana Impossible Foods. 

Outras promessas da biologia sintética para a próxima década seguem a mesma linha, procurando obter carnes a partir do cultivo de células em laboratório e simular a proteína animal. E existem ainda mais produtos alimentícios que devem ser impactados por essa tecnologia, como aditivos cuja produção é considerada complexa — é o caso de corantes alimentícios.

Para se ter ideia, deixar seu iogurte de morango com tom avermelhado é resultado de uma pequena saga. Primeiro é necessário ter acesso a espécies vegetais específicas, como a palma forrageira e a figueira-da-índia. Nelas, é preciso encontrar um inseto chamado cochonilha, coletar as fêmeas e dissecá-las. Cada uma tem cerca de 5 milímetros e são utilizadas aproximadamente 70 mil cochonilhas para obter 500 gramas de corante natural de carmim. 

Esse caminho pode ser encurtado por meio da biologia sintética. Em vez de depender de plantas e animais, será viável produzir o pigmento em escala industrial a partir de bactérias ou leveduras — desde que elas possuam a via de biossíntese correta. Isso significa dizer, em outras palavras, que uma série de genes precisam funcionar para chegarmos ao produto final. É esse “passo a passo”, já presente na cochonilha, que pode ser transportado para outro organismo. 

Como isso é possível? 

A biologia sintética conta com uma extensa gama de técnicas, dentre as quais vale a pena olharmos para duas mais de perto: as tecnologias derivadas do CRISPR e a computação digital em células vivas. 

Essa última consiste em programar funções nas células como se fossem computadores. “Há alguns anos, a gente usava células naturais melhoradas geneticamente ou por fermentação, mas agora eu posso projetá-las para sentir determinados sinais e reagir com uma resposta química específica para produzir o que for do meu interesse”, explica Luis Pacheco.

As tecnologias ligadas ao CRISPR, por sua vez, costumam ser empregadas para a edição de genomas. Essa sopa de letrinhas refere-se a um sistema de imunidade bacteriana que pode funcionar como ferramenta para alterar o DNA — foi a descrição desse trabalho, inclusive, que ganhou o Prêmio Nobel de Química 2020. 

Pioneiro, o método permite que o conteúdo de uma célula viva seja modificado sem que haja a necessidade de realizar uma manipulação prévia em laboratório. “Fazendo isso a gente consegue sair da abordagem de tentativa e erro e identificar, de maneira muito específica e altamente eficiente, onde e como queremos modificar o material genético”, constata Pacheco.

E qual o impacto sobre os processos produtivos?

Biologia sintética e alimentaçãoIlustração: Shutterstock

Essas e outras técnicas alteram não apenas os alimentos que comemos, mas também como eles são produzidos. Foi o CRISPR que possibilitou, por exemplo, a criação da primeira cana-de-açúcar editada geneticamente. “A Embrapa gerou duas novas variedades: a Cana Flex I e a Cana Flex II”, diz Daniela Bittencourt.  

Na primeira, o gene que confere rigidez à parede celular da planta foi silenciado, assim resultando em um melhor aproveitamento para geração de energia (por meio da biomassa) e para a nutrição animal. Na Cana Flex II, outro gene foi silenciado e permitiu maior produção de sacarose, aumentando a produtividade.

A diminuição do uso de fertilizantes sintéticos também está no horizonte, basta aprimorarmos a capacidade da espécie cultivada de absorver fósforo e nitrogênio. Outra possibilidade — e essa bastante importante diante dos eventos extremos intensificados pela crise climática — é ativar, na plantação, o gene de tolerância à seca nas épocas críticas. 

“Em um futuro mais distante, pode-se vislumbrar o desenvolvimento de microrganismos que se associam às plantas, capazes de atuarem como biossensores, contendo material genético projetado especificamente para protegê-las de ameaças ambientais e biológicas”, analisa Bittencourt. 

As expectativas em torno da biologia sintética são muitas, entre elas o desenvolvimento de produtos que impulsionem uma economia verde e mais sustentável. Com uma população mundial crescente e recursos ambientais limitados, a ideia é que a humanidade consiga produzir comidas nutritivas sem causar escassez ou prejudicar o planeta. 

Mas, para concretizarmos esses objetivos, o Brasil precisa dar mais atenção à biologia sintética. É preciso, por exemplo, desenvolver uma regulamentação específica para garantir a segurança de produtos provenientes dessa área e averiguar impactos, ameaças e riscos. Atualmente, cada alimento é analisado de forma individual segundo suas características genéticas e aplicações, com base na Lei de Biossegurança — que é válida para o tema da biotecnologia como um todo.

Além disso, a participação brasileira no contexto internacional ainda é considerada tímida. “Para estarmos competitivos daqui a 20 anos, precisamos olhar agora para a biologia sintética”, observa Pacheco. “Há várias iniciativas em termos de formação de recursos humanos no Brasil, mas não temos muito investimento em pesquisa.”

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