Dá para prever quando uma pandemia vai acontecer?
Especialistas dizem ser inevitável que uma nova doença se espalhe novamente
Ao longo de mais de dois anos de pandemia do novo coronavírus, os cientistas se debruçaram para pesquisar, analisar e esmiuçar todo tipo de dados e informações em busca de respostas que nos ajudassem a enfrentar o patógeno.
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E, mesmo com muito conhecimento produzido nesse período, uma pergunta ainda permanece em aberto: afinal, quando e onde irá surgir a próxima pandemia?
Sim, a pergunta é essa mesma, já que a probabilidade de um evento como esse acontecer novamente é dada como certa. “Vai ter uma próxima pandemia. Isso é uma coisa que a gente já sabe, e que é inevitável. É uma questão de quando vai acontecer”, disse a brasileira Mariângela Simão, diretora-geral adjunta da OMS (Organização Mundial da Saúde), em entrevista à rádio francesa RFI em outubro de 2021.
Pensando nisso, a OMS formou um grupo de países com a missão de negociar um tratado internacional sobre pandemias. A ideia é que, em uma nova crise sanitária, os erros cometidos na pandemia do novo coronavírus não sejam repetidos, e os governos tenham uma resposta mais rápida diante do problema.
Mas, afinal, é possível prever a próxima pandemia?
Infelizmente, a resposta para essa pergunta é não. “Nunca impedimos antes e ainda não é possível fazer isso”, afirma José Eduardo Levi, biólogo molecular do laboratório GeneOne, da Dasa, e pesquisador do Laboratório de Virologia do Instituto de Medicina Tropical da USP (Universidade de São Paulo).
De acordo com ele, o que temos é uma lista de micro-organismos – chamados de agentes – que têm uma maior probabilidade de causar um evento pandêmico. No topo dessa lista, estão os vírus causadores de doenças respiratórias, já que são mais difíceis de controlar uma vez que começam a se espalhar pelo ar.
Mesmo assim, não dá para saber qual deles irá se tornar perigoso para o ser humano. “O próprio coronavírus foi uma surpresa”, afirma Tatiana Ometto, doutora em microbiologia e virologia pela USP (Universidade de São Paulo). “Nós já imaginávamos que uma pandemia estava para acontecer, mas a comunidade científica apostava no influenza por sua facilidade em mutar”, afirma.
Mas isso não aconteceu. “É uma demonstração de que não podemos prever esses eventos, apenas seguir alguns alertas, alguns indicativos de que existem vírus de maior preocupação que estão circulando”, explica ela, que lembra que a biologia não é uma ciência exata. “Quando a gente pensa que entendeu tudo, as perguntas mudam e as respostas também”, afirma.
E por que os vírus e não as bactérias ou os fungos, por exemplo, são os mais temidos? “Por que eles têm um maior potencial de mutação se espalham rapidamente”, afirma Ometto. “As bactérias são seres mais complexos e, além disso, estudadas há mais tempo, com mais tratamentos disponíveis para o manejo de doenças, o que não ocorre com os vírus”, explica.
Quais vírus representam maior risco?
Atualmente, muitos cientistas apostam que o vírus mais propenso a causar uma nova pandemia é o Influenza, ou melhor, uma futura mutação dele. Isso porque a composição do vírus é bastante suscetível a modificações e até fusões com outros exemplares de linhagens diferentes.
É o caso do H1N1, por exemplo, considerado o que a ciência chama de “quimera” por reunir em seu código genético partes de materiais de vírus influenza diferentes que afetam porcos, aves e o homem. Por isso, o alerta em cima do vírus causador da gripe é permanente.
Além disso, o influenza já tem um reconhecido histórico pandêmico. Foi justamente uma versão do H1N1, por exemplo, a responsável pela gripe espanhola (que não se originou na Espanha) e matou pelo menos 50 milhões de pessoas entre 1918 e 1919.
O mesmo vírus voltaria a causar estragos em 2009, quando um novo subtipo do patógeno – agora chamado de “gripe suína – criou uma nova pandemia com alguns milhares de mortos pelo mundo.
Mas ele não é o único a ser vigiado de perto por seu potencial pandêmico. As arboviroses também estão na lista de possíveis agentes de uma nova pandemia, especialmente no Brasil, em que doenças causadas por arbovírus – como dengue, febre amarela, chikungunya e zika – são endêmicas em muitas regiões.
“Há uma negligência de possíveis ameaças, de doenças tropicais que atingem mais países em desenvolvimento e não afetam a vida de muitas pessoas agora”, avalia Thiago Moreno Lopes e Souza, pesquisador do CDTS (Centro de Desenvolvimento Tecnológico em Saúde) da Fiocruz, no Rio de Janeiro.
Segundo ele, as arboviroses não devem ser descartadas de possíveis agentes de futuras epidemias e pandemias. “Historicamente, sabemos que elas representam uma forte ameaça”, acredita.
Pandemias e o fator ambiental
A ciência estima que existam cerca de 1,7 milhão de vírus na vida selvagem. Desses, apenas três mil são nossos conhecidos, deixando em aberto uma infinidade de agentes com potencial para seguir a mesma trajetória preocupante do Sars-CoV-2, o vírus da COVID-19.
Nesse cenário, as maiores ameaças são os chamados vírus zoonóticos, aqueles patógenos que conseguem “pular” dos animais para os seres humanos. Chamado de “spillover”, esse processo viral ainda é pouco compreendido pela ciência, mas já tem um longo histórico: o HIV, por exemplo, veio dos chimpanzés; o ebola provavelmente se originou dos morcegos.
O próprio Sars-CoV-2 teve uma fase animal, provavelmente em morcegos ou pangolins, enquanto outros coronavírus também passaram por animais: o Sars originou-se em morcegos e civetas, enquanto o Mers teve uma parada nos dromedários.
Acontece que, nos últimos anos, a taxa de spillover tem acelerado – uma resposta ao avanço cada vez maior do ser humano em áreas de florestas que nunca foram habitadas anteriormente.
“A presença do homem em áreas de floresta perturba um ecossistema em equilíbrio até então”, afirma Ometto. “Isso provoca deslocamento de animais que são repositórios de vírus e outros patógenos e, quando o homem se insere nesse contexto, ele se sujeita a entrar em contato com esses organismos”, diz a especialista.
O resultado dessa equação é um aumento do risco desses agentes realizarem a “passagem” do mundo animal para o ser humano. “É aí que a situação pode escalar mais do que gostaríamos”, alerta.
Nesse sentido, o aumento da temperatura global também representa um risco para a saúde de todo o planeta, já que a ameaça de vírus até então desconhecidos e que estão ressurgindo com o descongelamento das geleiras é real.
“Restos de corpos de animais que morreram por alguma doença e estavam congelados podem, sim, representar um risco biológico alto se entrarem em contato com alguma pessoa”, alerta Levi.
A elevação da temperatura do planeta também atinge em cheio o clima, que passa por modificações e permite que vetores de transmissão de doenças passem a habitar outros ecossistemas. “Países frios, com ambiente desfavorável para mosquitos, agora estão mais quentes e sofrem com infestações”, afirma Moreno.
“Isso faz com que as pessoas que vivam naquela região e que nunca tiveram contato com esses agentes sejam mais vulneráveis às doenças, já que não possuem nenhuma imunidade contra eles”, explica o especialista da Fiocruz.
Como podemos nos preparar para novas pandemias?
Se, por um lado, é impossível prever as pandemias, por outro, algumas medidas podem ser tomadas para que possamos nos preparar para novos eventos do tipo – e termos uma resposta mais rápida e efetiva, reduzindo as perdas de vidas e econômicas como as que vivemos na pandemia do Sars-CoV-2.
A principal delas é investir em projetos de vigilância epidemiológica e genômica, que consistem em monitorar a presença de possíveis agentes patogênicos em animais silvestres em diversos locais considerados estratégicos, como as florestas tropicais.
Uma vez que esses agentes sejam detectados em algum animal, eles devem ter o material genético sequenciado para que os cientistas possam saber um pouco da história desse patógeno: de onde ele veio, sua estrutura e seu potencial de mutação e de “pular” para os seres humanos.
Nesse sentido, ainda em 2020 foi criado o Projeto Previr – Rede Nacional de Vigilância de Vírus em Animais Silvestres, financiado pelo Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovações, e que reúne profissionais de diversas universidades brasileiras para buscar, de forma ativa, vírus com potencial de emergência para pessoas em diferentes regiões brasileiras.
Ometto, que participou de algumas expedições do projeto em biomas brasileiros, conta que foram encontrados diversos agentes de preocupação, como o hantavirus (transmitido por roedores e que provoca uma síndrome respiratória grave) e outros vírus causadores de febres hemorrágicas, como o Nipah e o Arena.
A iniciativa brasileira não é inédita. Em 2016, o cientista americano Dennis Carroll, que participou da série “Pandemia” do Netflix, criou o Global Virome Project, um projeto para tentar descobrir novos vírus e monitorá-los na tentativa de se antecipar a possíveis saltos para os seres humanos.
E, mais recentemente, em 2021, um time de pesquisadores da Universidade da Califórnia em Davis, nos Estados Unidos, criou uma ferramenta online chamada SpillOver em que é possível detectar o risco que alguns vírus têm de se humanizarem com base em 32 fatores.
Mesmo assim, ainda existem dificuldades a serem superadas. A desigualdade social, por exemplo, aprofunda condições insalubres de vida, criando interações entre humanos e animais que aumentam o risco de uma transição de vírus entre as espécies.
Ou seja, garantir que nossa espécie saia vitoriosa da próxima pandemia passa por diversas frentes de atuação, como preservação do meio ambiente, garantia de condições de vida dignas e uma vigilância constante em agentes emergentes. “Tudo isso custa dinheiro, mas é mais barato criar toda essa estrutura e manter a conscientização de quem vive à beira das florestas e áreas de risco do que lidar com as perdas que uma pandemia pode nos causar”, acredita Ometto.