A maratonista que transformou o Capão Redondo
Projeto Vida Corrida, fundado por Neide Santos, traz melhorias para a periferia por meio do esporte
O que o esporte significa na sua vida?
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Para muita gente, é uma espécie de obrigação, um remédio diário para viver melhor. Para outros, é o melhor momento do dia. Mas acredite, ele pode ser muito mais que isso: pode ser sinônimo de salvação.
Esse é o caso de Marineide Santos Silva, fundadora do Projeto Vida Corrida — programa social que, desde 1999, vem transformando a vida dos moradores do bairro do Capão Redondo, periferia da Zona Sul de São Paulo.
A história de Neide com a corrida, porém, é mais antiga. Já faz tempo que ela está habituada a calçar os tênis e sentir o vento no rosto enquanto corre pelas ruas da cidade.
“Fui apresentada à corrida em 1974”, conta a maratonista. Na época, ela cursava o ensino médio e foi convidada a participar do revezamento 4×100 metros em um campeonato do colégio. “Eu comecei a correr e não parei até hoje. São mais de quatro décadas correndo”, afirma.
Depois da fase escolar, a vida mudou um pouco. Mas a corrida permaneceu e, assim, Neide passou a ser conhecida como “a maluquinha que corre” pelos moradores do Capão Redondo. “Era algo surreal para a comunidade”, comenta.
E ficou mais impressionante quando ela decidiu participar da São Silvestre, tradicional corrida de rua que ocorre anualmente em São Paulo. Hoje não nos parece estranho ver mulheres correndo, né? Ainda bem. Mas há alguns anos não era assim.
A São Silvestre, um dos eventos de atletismo mais famosos do Brasil, existe desde 1925. A participação feminina, no entanto, só aconteceu meio século depois, em 1975. Neide correu a São Silvestre na década de 1990.
Pelo direito de correr
A presença de uma mulher simples e de comunidade na São Silvestre atraiu olhares: naquele tempo a corrida de rua ainda ganhava popularidade. Rendeu, inclusive, uma entrevista jornalística que repercutiu bastante.
A partir daí, várias mulheres passaram a conversar com Neide, demonstrando interesse pelo esporte. A primeira delas foi Maria Gonçalves, que, aos 60 anos, começou a correr na companhia da maratonista.
“Era uma época em que só tinha campinhos de futebol na comunidade e, nos finais de semana, somente os homens praticavam esporte”, relata Neide. “O fato de eu ter a coragem e a ousadia de colocar um shorts e um top e sair correndo por aí chamou a atenção das mulheres.”
Aos poucos, o grupo de corredoras foi crescendo, e o Projeto Vida Corrida se estruturando. Se engana quem pensa que os benefícios desse movimento ficaram restritos ao corpo. Por causa da corrida, algumas mulheres começaram a competir (tanto dentro como fora do Brasil) e outras decidiram cursar Educação Física.
Muitas expandiram seus horizontes para além da rotina exaustiva de dona de casa. Elas encontraram, no esporte, um momento de paz e alívio em meio a uma realidade repleta de deveres e muitas vezes com abusos físicos e psicológicos, na qual os direitos ficam esquecidos.
“A corrida mudou a vida delas”, reconhece Neide. “Elas enfrentaram uma sociedade e um bairro totalmente machistas para dizer: ‘vou correr, sim, tenho direito ao esporte’.”
O luto se transforma em luta
Se hoje o projeto atende crianças e adolescentes, além das mulheres, é porque Neide transformou sua perda numa revolução. “Um dia meu filho saiu e não voltou para casa. Uma criança de 14 anos o assaltou e puxou o gatilho”, conta.
Não foi fácil lidar com o luto. Uma das grandes perguntas de Neide era: ‘por que com o meu filho?’. Com o tempo, ela também passou a questionar: ‘por que com o filho dos outros?’. A partir disso, decidiu fazer o que pudesse para mudar a realidade do seu entorno.
“Toda grande causa social vem de uma grande indignação ética”, ressalta Neide. Ela sabia que não seria capaz de mudar o mundo inteiro, mas também tinha consciência do quão importante seria acolher crianças. “Se aquele menino tivesse um projeto social que o acolhesse com oportunidades na vida, ele não teria puxado o gatilho”, opina.
De 1999 até agora, o Vida Corrida impactou mais de 4 mil pessoas. Hoje, o projeto atende 400 mulheres e 400 crianças, oferecendo atletismo, basquete, tênis e futebol. Além disso, os jovens contam com um programa de preparação para o primeiro emprego e de incentivo à universidade. Ou seja, é uma grande ferramenta de transformação social.
“O esporte educa, disciplina, cria regras, e isso é essencial dentro de uma comunidade. Um ajuda o outro, um dá a mão para o outro”, afirma Neide. “Às vezes, as pessoas falam que o esporte transforma vidas. Mas eu falo: esse esporte salva vidas — principalmente dos jovens, que começam cedo no projeto e criam uma perspectiva de um mundo melhor”, complementa.
Sempre é hora de começar
E aí? Ficou inspirado e com vontade de correr? Neide tem um conselho dos bons: não espere chegar segunda-feira e nem o primeiro dia do mês. “Ponha uma roupa confortável hoje mesmo e vá dar uma volta no quarteirão”, aconselha. “Amanhã, aproveita que você já fez essa voltinha e anda 1 quilômetro.”
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Com o tempo, você vai evoluir cada vez mais e notar uma melhora na qualidade de vida. “Tenha plena certeza de que o corpo nasceu para o movimento e não para ficar estático”, lembra Neide. “E comece a se movimentar se você quer ter o prazer de envelhecer”, recomenda a maratonista.